HOMENAGEADO
Em um tempo em que tudo precisa ser grande, rápido e chamativo para ter valor, Manoel de Barros ousou ser o contrário. Fez da insignificância um universo, do silêncio uma linguagem e das palavras esquecidas um templo de poesia. Foi com essa alma desobediente e sensível que ele se tornou um dos maiores nomes da literatura brasileira — e, com justiça poética, será o grande homenageado da Bienal Pantanal – 1ª Bienal do Livro de Mato Grosso do Sul, que acontecerá de 4 a 12 de outubro de 2025, em Campo Grande.
Nascido em 1916, em Cuiabá (MT), mas criado entre as margens do rio Paraguai, nos rincões do atual Mato Grosso do Sul, Manoel era um menino do mato que colecionava vazios, sons de bicho e palavras tortas. Viveu grande parte de sua vida em uma chácara próxima a Corumbá, onde desenvolveu um olhar contemplativo sobre a natureza, os homens simples e as miudezas do mundo. Era ali, na solidão sonora do Pantanal, que ele cavava poesia como quem cava poço: para achar água onde os outros só viam terra seca.
Sua trajetória literária começou cedo, com a publicação de “Poemas Concebidos sem Pecado”, em 1937. Mas foi só a partir da década de 1980 que o Brasil começou a enxergar o tesouro que havia naquele poeta de voz baixa e imaginação barulhenta. Vieram então os grandes reconhecimentos: dois Prêmios Jabuti, o Prêmio Nestlé de Literatura, o título de intelectual do ano pela União Brasileira de Escritores e uma legião de leitores apaixonados que enxergavam no seu jeito de escrever uma forma nova — ou talvez muito antiga — de ver o mundo.
Entre seus livros mais marcantes estão “O Guardador de Águas”, “Livro sobre Nada”, “Retrato do Artista Quando Coisa”, a trilogia “Memórias Inventadas” e o encantador “Menino do Mato”, voltado para o público infanto-juvenil. Em todos eles, a marca registrada: o humor sutil, a subversão gramatical, o olhar infantil, a reverência pelo inútil. Manoel não escrevia para impressionar — escrevia para desimportar as palavras, como ele mesmo dizia, e torná-las leves como borboletas.
Sua poesia não cabia em rótulos. Era pós-tudo e pré-nada. Reinventava a linguagem, invertia sentidos, dava protagonismo a coisas esquecidas: um sapo, uma erva daninha, uma cadeira quebrada. “Eu tenho um ermo enorme dentro do olho, mas ninguém vê”, escreveu. E quem lê, vê. Manoel fazia mágica com o barro — não o barro da argila, mas o barro da vida: sujo, comum, cheio de histórias escondidas.
Mais do que um poeta, Manoel de Barros foi um inventor de mundos. Um tradutor da infância, um engenheiro da delicadeza. É esse espírito que será celebrado na Bienal. O evento vai contar com exposições, leituras poéticas, atividades infantis inspiradas em suas obras e mesas-redondas com escritores, estudiosos e artistas que beberam da fonte barrosa e cristalina do seu pensamento. Haverá um espaço exclusivo chamado “Poemaria do Pantanal”, onde as palavras de Manoel ganharão corpo, som, cor e vento.
Num tempo em que tanta gente escreve para vender, o poeta escrevia para viver — e, ao fazer isso, nos ensinava que a poesia está nos lugares onde a pressa não entra. Em tempos de algoritmos, Manoel ainda é um respiro. Um campo aberto. Um silêncio bom. Um chão fértil onde nascem as palavras que a gente não sabia que precisava ouvir.
Homenageá-lo na Bienal Pantanal – 1ª Bienal do Livro de Mato Grosso do Sul não é apenas um tributo. É um acerto de contas com a beleza, com a linguagem e com as raízes desse Estado que ele ajudou a eternizar em verso. É dizer para o Brasil e para o mundo que a poesia pantaneira não só existe — como respira fundo e ainda tem muito a dizer.
Manoel de Barros não está mais entre nós fisicamente, mas sua obra continua viva, fresca, cheia de sapos e passarinhos, de árvores que olham os homens com desprezo, de pedras que ensinam e de crianças que sabem nomear o mundo com mais sabedoria que os adultos. Ele será o coração pulsante da Bienal. Porque nunca morre um homem que escreveu que “as coisas que não têm nome são mais pronunciadas por crianças”. Ele se espalha — como vento, como água, como palavra boa.